Na abertura da série de reportagens sobre a relação da dupla Ba-Vi com a escola, o GLOBOESPORTE.COM conta histórias e apresenta personagens.
Os sonhos do futebol terminam deixando de lado a escola (Foto: Eric Luis Carvalho/Globoesporte.com)
O Estatuto da Criança e do Adolescente obriga os jovens integrantes das
divisões de base dos clubes brasileiros a frequentarem a escola, e cabe
às instituições cuidar para que os jovens tenham acesso às salas de
aula. A fiscalização disso tudo fica por conta do Ministério Público
Federal.Na Bahia, os dois maiores clubes do estado passam pelo mesmo problema: o baixo interesse dos alunos-atletas pelos estudos. Dispostos a vencer no mundo do futebol, a maioria deixa de lado a oportunidade de se dedicar às salas de aula para viver em função da bola. Os salários astronômicos, a fama e a possibilidade de uma rápida ascensão social são fatores determinantes para fazer do esporte o predileto em relação aos livros e ao ambiente escolar.
De olho no futuro, o clube também investe nas crianças. Atualmente, o Vitória tem uma parceria com dois conceituados colégios particulares da capital baiana. Quarenta jovens são bolsistas nas duas instituições. O aluno-atleta interessado em estudar em um dos dois colégios passa por uma seleção e, se aprovado, torna-se bolsista. Além disso, os demais garotos que moram na Casa do Atleta, na Toca do Leão, estão matriculados em escolas públicas do entorno do CT, no bairro de Canabrava, em Salvador.
- Umas 40 crianças fazem parte da parceria do Vitória com dois colégios particulares. Na verdade, eles têm que acompanhar o nível dos colégios. Tem os testes para entrar. Porque não adianta querer colocar qualquer menino. O menino às vezes não vem de uma condição favorável. Não que vá perder de ano, mas é que não consegue acompanhar mesmo. Portanto, há uma avaliação do colégio para saber o quanto ele está estudando. Fora os que não estão nos colégios particulares, que estão matriculados nas escolas públicas também estão estudando normalmente – conta João Paulo Sampaio, coordenador de Divisão de Base do Vitória.
João Paulo Sampaio (esquerda) conversa com o Carlos Amadeu, técnico do Vitória Sub-20 (Foto: Raphael Carneiro/Globoesporte.com)
No total, o Rubro-Negro conta com sete diferentes categorias de base,
que envolvem jovens entre 10 e 19 anos. O diretor de futebol de Divisão
de Base, Epifânio Carneiro, diz que o clube conta uma forte estrutura
para auxiliar os seus jovens.- A escola é um assunto tratado aqui com muito respeito. Temos uma psicóloga, uma assistente social e duas mães sociais. Elas cuidam diariamente da frequência na escola e rendimento escolar. Sabemos das dificuldades que esses jogadores têm na base. São muitos treinamentos e viagens para torneios. Então isso prejudica muito o currículo deles, mas é uma preocupação nossa. Temos a missão de fazer destes garotos futuros jogadores do Vitória, mas, caso não tenham sucesso com a bola, precisamos fazer destes garotos cidadãos de bem. Mais do que a preparação de jogadores, aqui preparamos para ter homens lá na frente. A gente tem um carinho muito especial por esses meninos, até mesmo quando já estão no profissional – disse.
Já no Bahia, a preocupação maior é com a dificuldade de adaptação das crianças que chegam ao clube de diversas partes do país. O rendimento dos garotos nem sempre fica dentro dos padrões esperados.
- Atualmente trabalhamos com 90 atletas de 14 a 19 anos. Temos assistentes e mães sociais, mas temos dificuldades diante de uma situação cultural do Brasil. Por exemplo, eu recebo jogador em maio e, diante de uma série de razões, como o fato de vir de uma cidade pequena e com o ensino inferior, termina prejudicando. Eles têm dificuldades de adaptação. Normalmente a gente tenta envolver a família, ressaltar a importância da frequência e do bom rendimento, mas é difícil – aponta Newton Motta, coordenador das Divisões de Base do Bahia.
MPE analisa situação dos clubes e estuda melhorias de condições
Preocupação com o baixo rendimento na escola, com as condições de moradia e de documentação. Um laudo preparado pelo Ministério Público da Bahia, em parceria com o Ministério Público do Trabalho e a Superintendência Regional do Trabalho e Emprego, aponta as preocupações do estado e de Bahia e Vitória com os garotos de suas divisões de base.
A partir destes apontamentos, o MP estadual objetiva garantir o cumprimento de alguns direitos dos jovens atletas das categorias de base dos clubes baianos. O documento tem previsão de conclusão no dia 7 de dezembro, segundo uma das coordenadoras da ação, a promotora do MPE Vilma Cecília Batista.
- Estamos fazendo uma inspeção em parceria com o Ministério Público do Trabalho. Estamos analisando as condições desses jovens atletas contemplados pela Lei Pelé - os acima de 14 de anos - e os que não entram na Lei Pelé - abaixo de 14 anos. Sei que tem muitas crianças matriculadas nos dois clubes. Já visitei o Bahia in loco, mas ainda não visitei o Vitória. Sei que tem uns garotos com boas notas, outras com notas não tão boas. Então precisamos analisar esse acompanhamento. Como fazer com que essas crianças passem a render na escola e como elas podem ser acompanhadas de uma forma que melhore esse rendimento – disse Vilma Cecília.
O coordenador de divisões de base do Vitória, João Paulo Sampaio, ressalta a importância da fiscalização dos órgãos e garante que, no clube, os estudos têm prioridade.
- É uma exigência do clube de formar o cidadão. Além disso, o Ministério Público está muito atuante. A fiscalização é constante. Eles vêm aqui sem avisar pela menos duas vezes no ano. E, aqui na base, a gente sempre abre mão em função da escola. Eu tive goleiro que chegou da Seleção e tinha finais do Baiano. Só que ele havia perdido algumas provas e tinha segunda chamada no mesmo dia da final do Campeonato Baiano infantil da época. Eu falei: ‘Vá fazer sua prova’ e ele foi fazer. Não teve jogo para ele – conta Sampaio.
A função do MP, no entanto, não se restringe à defesa dos direitos dos atletas. A entidade também tem como dever encontrar meios de proteger os clubes de irregularidades.
- Um ponto levantado pelo Vitória é uma preocupação dos clubes com documentação falsa. Muitos desses garotos chegam com documentos do irmão, de algum parente, com idade adulterada. A preocupação é uma forma de estudar como os clubes podem se proteger disso – disse a promotora.
Experiente, o coordenador do Bahia, Newton Motta diz que a situação em relação aos “gatos” atualmente é mais tranquila devido aos avanços sociais do Brasil.
- Ainda existe, mas hoje temos um acompanhamento muito maior. O próprio governo ajudou muito em termos de cidadania. Então quando chega aqui, a gente procura fazer toda uma pesquisa, desde o batistério (certidão de batismo), certidão de nascimento, tudo. Hoje ainda tem o exame de idade óssea. Há uma legitimidade maior – acredita o dirigente do Bahia.
Um Ba-Vi de exemplos
Nos grupos atuais de Bahia e Vitória, alguns atletas do grupo profissional mostram uma preocupação maior com os estudos e esperam servir de exemplo para os mais novos. O zagueiro tricolor Danny Morais e o meia rubro-negro Pedro Ken concluíram os estudos na escola e chegaram a iniciar a vida no Ensino Superior, mas tiveram que largar a faculdade devido à dedicação integral ao futebol, quando se tornaram profissionais.
Apaixonado por livros, Pedro Ken passou no vestibular, mas escolheu a bola (Foto: Reprodução / TV Bahia)
Apaixonado por livros, Pedro Ken passou de primeira na PUC de Curitiba.
O jogador chegou a cursar um semestre de Educação Física, mas precisou
deixar os estudos para acompanhar o Coritiba nas viagens do clube.- Cheguei ao Coritiba com 10 anos, dividia o futebol com o estudo puxado, já que meu colégio era muito bom. Nunca fui para uma recuperação. Quando chegou na época do vestibular, passei de primeira na PUC, no curso de Educação Física – relembra o meia.
As viagens pelo clube também fizeram Danny Morais, aprovado no curso de Educação Física em Porto Alegre, optar por deixar os estudos de lado. No entanto, o zagueiro manteve o interesse no ambiente acadêmico e espera voltar em breve aos estudos. O jogador é colaborador de um site americano sobre futebol, no qual escreve em inglês.
- Já fiz mais da metade do curso de Educação Física e tenho certeza que vou terminar para poder exercer alguma coisa no futuro. Em relação ao inglês, eu estudo bastante. Estudava em Porto Alegre e agora faço aulas aqui em Salvador – conta Danny Morais.
Além da dupla, o zagueiro do Bahia, Lucas Fonseca, destoa como um caso à parte. O defensor começou tardiamente no futebol para se dedicar aos estudos. Por outro lado, uma jovem promessa da base do Vitória, o volante Gabriel, sonha com um diploma. Todas estas histórias o GLOBOESPORTE.COM conta ao longo desta semana na série de reportagens sobre o futebol e a escola.
Fábrica de sonhos. Usina de ilusões
Jovens tentam a vida no futebol e na maioria das vezes, deixam a escola de lado (Foto: Eric Luis Carvalho/Globoesporte.com)
Milhares de crianças passam anos de suas vidas divididos entre a escola
e os clubes, mantendo vivo o sonho de se tornarem jogadores de futebol,
mas nem sempre isso é possível. A grande maioria desses garotos sequer
chega perto de disputar uma vaga entre os profissionais. Apenas uma
pequena parte desses meninos terá o futebol como profissão.Para o coordenador de divisões de base do Vitória, João Paulo Sampaio, a categoria é uma grande usina de sonhos, mas se revela uma enorme fábrica de ilusões.
- Porque eu falo que a divisão de base é uma grande fábrica de ilusão. Poucos vão chegar. No Vitória, a janela é um pouco maior, mas 80% não vão dar certo. Em outros clubes, 95%. Então esses meninos precisam se preparar. Eu sou um caso desses. Sempre me preocupei em estudar. Fiz duas faculdades e, se não, não estaria fazendo esse trabalho que faço hoje. E tem “N” exemplos de atletas que não tiveram condições de administrar a própria vida. Por isso, todos os profissionais aqui são capacitados, formados com nível superior. Porque o Vitória se preocupa com a formação do homem e não só do atleta. Fui atleta do Vitória. Tenho 22 anos de casa. Fui atleta do júnior, cheguei a jogar no profissional. Parei, fiz faculdade, doutorado, agora estou fazendo MBA em gestão – conta João Paulo.
Ex-goleiro, Emerson concluiu os estudos e agora é
dirigente (Foto: Arquivo pessoal/ emerson ferreti)
O ex-goleiro Emerson Ferretti, ídolo do Bahia e com passagens pelas
categorias de base da Seleção Brasileira, faz coro com as declarações de
João Paulo. Emerson admite que foi uma exceção à regra.dirigente (Foto: Arquivo pessoal/ emerson ferreti)
- O que facilitou estar ligado ao conhecimento durante minha carreira como atleta foi o fato de eu gostar de estudar, o que é a exceção da regra, infelizmente. A maioria dos atletas não gosta e, devido às dificuldades de conciliar estudo e carreira, acabam deixando os estudos completamente – disse.
O coordenador de Divisões de Base do Bahia, Newton Motta revela outro problema que distancia da escola alguns jovens candidatos a atletas: o talento.
- O problema é que muitos jovens nos quais a gente consegue ver vocação para o futebol acham que o estudo é um detalhe, justamente porque eles têm talento. Eu duvido, por exemplo, que o Neymar tenha sido um bom aluno. É claro que existem exceções, como o caso do Kaká, mas para a maioria desses garotos, o estudo é detalhe. Muitos clubes fazem um bom trabalho nesse quesito nas bases, mas é preciso levar essa situação em conta – afirma Motta.
Em busca dos sonhos do futebol, há caminhos que não fecham as portas para a escola (Foto: Eric Luis Carvalho/Globoesporte.com)
Crianças que desde cedo galgam uma vida melhor para seus familiares
tentam reescrever uma história nos gramados. Crianças com sonhos de
gente grande e uma responsabilidade que não cabe nas pequenas mãos.
Responsabilidade que é colocada à prova no talento e nos pés dessa
garotada que cresce com a consciência de que é preciso manter um olho na
bola e outro na sala de aula.A partir desta segunda-feira, o GLOBOESPORTE.COM inicia uma série com cinco reportagens sobre a relação da escola com Bahia e Vitória, os principais times baianos. Nesta terça-feira, você confere a história de Danny Morais e Pedro Ken, jogadores de sucesso que estiveram perto de trocar o futebol pela universidade.
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